O Brasil é de longe o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, com 657 milhões toneladas colhidas na safra 2016/2017, perto do dobro do segundo colocado, a Índia, que produziu aproximadamente 350 mil toneladas. Segundo projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a lavoura de cana, que na última safra ocupou 9 milhões de hectares, deve ficar na vice-liderança entre as principais culturas agrícolas em termos de faturamento. Os canaviais brasileiros, de acordo com o Mapa, geraram até outubro aos seus produtores uma receita bruta de R$ 71,8 bilhões, atrás apenas das plantações de soja (R$ 116 bilhões).
Apesar do bom desempenho, um dado preocupa o setor. A produtividade média da lavoura canavieira, em torno de 73 toneladas por hectare, não tem evoluído nos últimos anos. A crise econômica, que fez com que os usineiros tivessem menos recursos para investir em cuidados com as plantações (adubação, controle de pragas, renovação do canavial), contribuiu para essa estagnação, assim como o aumento da área de plantio. Algumas dessas novas regiões, com terras menos adequadas à cultura canavieira, geram um efeito negativo em termos de produtividade. A baixa produtividade é um desafio enfrentado não apenas pelas empresas do setor, mas também por institutos de pesquisa e universidades, que há décadas se dedicam a estudar a lavoura de cana com o objetivo de desenvolver novas tecnologias e criar variedades da planta mais resistentes a doenças e adaptadas a diferentes tipos de solo e clima.
O Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), empresa de biotecnologia localizada em Piracicaba, no interior paulista, é responsável por um dos três programas de melhoramento genético da cana-de-açúcar do país, juntamente com a Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa), com sede em Araras (SP), e o Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Em junho deste ano, o CTC obteve autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável pela análise da avaliação de biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGM), para comercializar a primeira cana transgênica do país (ver Pesquisa FAPESP nº 258).
Batizada de CTC20BT, a nova variedade é resistente à broca-da-cana, a fase larval da mariposa Diatraea saccharalis, considerada a principal praga dos canaviais brasileiros. O inseto provoca prejuízos anuais de cerca de R$ 5 bilhões na lavoura de cana, em razão de perda de produtividade, baixa qualidade do açúcar produzido e gastos com o controle da praga. As primeiras mudas da cana Bt, em cujo genoma foi introduzido o gene Cry1Ab da bactéria de solo Bacillus thuringiensis, já estão sendo disponibilizadas a clientes selecionados, para início da multiplicação, processo que deve levar de dois a três anos. Em seguida, essa cana passará a ser utilizada na produção de açúcar e álcool.
“A cana geneticamente modificada criada pelo CTC é um importante avanço na tecnologia aplicada à cana. Ela vai refletir em ganhos de produtividade agrícola e industrial e de qualidade da lavoura e do açúcar”, prevê Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica), entidade cujos associados respondem por mais da metade da produção nacional. “Comparada com outras culturas agrícolas, como soja, milho e algodão, que já se beneficiam de técnicas avançadas de melhoramento e de biotecnologia, estima-se que a cana esteja atrasada em cerca de 20 anos. Isso resulta num menor ganho histórico de produtividade.”
O desenvolvimento da cana transgênica, cuja expectativa do CTC é de reduzir drasticamente o índice de infestação – hoje em torno de 3% a 5% da lavoura nacional –, é fruto de um esforço contínuo de pesquisa. “O trabalho focado nessa variedade começou em 2011, mas nossos estudos com cana geneticamente modificada têm mais de 10 anos”, relata o engenheiro-agrônomo William Lee Burnquist, diretor de Melhoramento Genético do CTC.
O CTC, criado em 1969 como Centro de Tecnologia Copersucar, nasceu como uma filial de pesquisa da Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo, a Copersucar. “O foco dos pesquisadores era o melhoramento genético da cana. Buscava-se desenvolver cultivares com maior produtividade e tolerantes a doenças, pragas e estresse hídrico”, recorda-se. Em 2004, o CTC tornou-se uma associação sem fins lucrativos e, sete anos depois, uma sociedade anônima. No ano passado, obteve o registro de companhia aberta na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e passou a ser listada na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), hoje denominada B3. Seus principais acionistas são grandes usineiros, responsáveis por 60% da cana moída no país.
Atualmente, entre 70% e 80% do faturamento do CTC, que em 2016 foi de R$ 146 milhões, é destinado à atividade de pesquisa e desenvolvimento (P&D). A principal fonte de receita da companhia é o licenciamento de uso e multiplicação de cultivares por meio do pagamento de royalties. A atividade de pesquisa está sob responsabilidade de uma equipe formada por 260 pessoas (60% do efetivo total, de 435 colaboradores), sendo que 30% são mestres e doutores com formação acadêmica em agronomia, engenharia agrícola, biologia e engenharia química. Há dois anos, a empresa inaugurou um complexo de laboratórios de biotecnologia, com mais de 1,4 mil metros quadrados (m2), ampliando sua capacidade de transformação genética e análises moleculares. Essas unidades foram essenciais para o surgimento de inovações disruptivas como a cana transgênica.
Melhoramento genético
Além dos avanços em biotecnologia, a área de P&D do CTC dedica-se a outros três projetos: tecnologia de etanol celulósico ou de 2ª geração (E2G), produzido a partir da biomassa da cana (palha e bagaço), novos sistemas de plantio e melhoramento genético convencional. Desde a fundação da companhia, 87 novas variedades já foram desenvolvidas pela equipe dedicada ao Programa de Melhoramento Genético (PMG) da cana do CTC. Por meio do cruzamento de diferentes variedades, um processo conhecido como hibridação, os pesquisadores fazem a combinação de plantas chamadas parentais com o objetivo de obter, após várias combinações, uma terceira planta com características superiores àquelas que lhe deram origem.
Existem no Brasil mais de 500 variedades comerciais de cana, sendo que 15 ocupam 80% da área cultivada no Centro-Sul, a principal região produtora do país, responsável por mais de 90% da safra nacional – o restante está no Nordeste. Dessas 15 variedades principais, sete foram desenvolvidas pelo CTC, que responde por cerca de 30% da área plantada no país (ver gráfico).
Os cultivares nascidos nos laboratórios da empresa recebem duas denominações: CTC (lançados a partir de 2005) e SP (criados até 2004, quando o CTC ainda era um braço de pesquisa da Copersucar).
Durante o processo de melhoramento genético convencional, o cruzamento das variedades é realizado na estação de Camamu, na Bahia, onde as condições climáticas de temperatura e umidade são propícias para o florescimento natural da cana-de-açúcar. A empresa mantém nessa localidade um dos maiores bancos de germoplasma de cana do mundo, com mais de 5 mil variedades parentais. O banco de dados do CTC tem informações detalhadas sobre o desempenho dessas variedades e do histórico das famílias geradas por elas. As informações são usadas para prever o desempenho de novos cruzamentos nas seis áreas de atuação do programa de melhoramento genético da empresa, todas localizadas no Centro-Sul do país. Para cada uma dessas regiões, a empresa produz variedades customizadas, que atendam às necessidades específicas do lugar.
Outra pesquisa central do CTC é o desenvolvimento de uma nova tecnologia de plantio baseada no uso de sementes de cana, uma antiga demanda dos canavieiros. O modelo atual – em que colmos (tipo de caule) da planta são enterrados em sulcos no solo com o uso de tratores e outros implementos agrícolas – é considerado ineficiente por exigir elevada quantidade de matéria-prima, equipamentos, insumos e mão de obra. “Qualquer nova tecnologia de plantio é bem-vinda. O sistema atual é oneroso para os produtores, consome muito diesel, emite poluentes na atmosfera e contribui para a compactação do solo”, opina o engenheiro industrial químico Cláudio Lima de Aguiar, professor do Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).
Modelo de sucesso
O trabalho de pesquisa e desenvolvimento (P&D) do CTC e os bons resultados colhidos até agora se devem, também, ao modelo de negócios adotado pela empresa. O centro de biotecnologia que nasceu como um braço de pesquisa da Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo, a Copersucar, em 1969, começou sua guinada institucional em 2004. Naquele ano tornou-se uma instituição de pesquisa sem fins lucrativos bancada pelos cooperados da Copersucar e por usinas e associações de fornecedores. Em 2011 foi transformada em uma Sociedade Anônima (S.A.), cujos principais acionistas são do setor sucroenergético.
“A transformação em uma S.A. teve como objetivo ampliar o acesso, por parte da empresa, a novos recursos tecnológicos e financeiros”, conta Gustavo Leite, presidente do CTC.“Tais recursos são empregados em P&D voltados à indústria da cana com o objetivo de aumentar sua competitividade. Hoje as pesquisas estão concentradas em melhoramento genético, biotecnologia e tecnologias com potencial disruptivo e de grande impacto para o futuro produtivo do setor, como é o caso das sementes artificiais.”
Em 2014, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) entrou para o quadro de acionistas da empresa e, dois anos depois, suas ações começaram a ser listadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Para os próximos anos há a perspectiva de se fazer o IPO, a oferta pública inicial ou abertura de capital, procedimento que inaugura a venda de ações para o público.
Para Leite, o progresso é fruto do contínuo investimento em pesquisadores e profissionais altamente qualificados.
“No modelo adotado pelo CTC, a empresa fica com uma fração do valor criado pelas tecnologias que cria, repassando a maior parte do benefício ao cliente”, esclarece. A receita, por sua vez, é empregada para custear novas pesquisas e avanços tecnológicos. Essa forma de funcionamento poderia ser utilizada por outras empresas brasileiras porque o modelo direciona a pesquisa para as necessidades específicas de determinado setor. “Isso aumenta seu senso de urgência, qualidade dos investimentos e comprometimento com o resultado.”
Segundo a especialista em desenvolvimento de negócios Rosana Ceron Di Giorgio, ex-gestora de Inovação do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais e atual responsável pelo desenho de implantação da Plataforma de Relacionamento do Agropolo de Campinas, o modelo do CTC é pouco comum no Brasil. “Colocar as empresas juntas para compartilharem o risco, principalmente nas fases iniciais da pesquisa – fase pré-competitiva –, além de planejar as atividades de P&D a partir das demandas da indústria, são pontos fundamentais deste modelo”, diz Rosana. A especialista lembra que, normalmente, é o governo que assume o risco dos investimentos em pesquisa. Frequentemente a indústria entra mais tarde no processo, quando a tecnologia já está mais madura, mais bem demonstrada e o risco diminuiu.
Embrião de laboratório
O projeto de desenvolver uma semente de cana teve início em 2009 e ainda deve levar alguns anos para ser concluído. “Nossa semente é um embrião gerado em laboratório, por biotecnologia, envolvido por um endosperma [tecido que reveste o embrião e responsável por sua nutrição] artificial. Já temos várias provas de conceito definidas, mas ainda buscamos avanços nas pesquisas para alcançar os resultados necessários”, salienta a engenheira-agrônoma e pesquisadora do CTC Danila Montewka Melotto Passarin. “Trata-se de algo realmente novo. Não há ainda um formato definido, mas acreditamos que vai ser do tamanho de uma semente de soja ou pouco maior.”
Para Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da Unica, a nova tecnologia de plantio do CTC é aguardada com ansiedade pelo setor. “Ela pode representar uma evolução no sistema de produção da cana. Esperamos obter ganhos de eficiência e qualidade, maior produtividade e sanidade do canavial”, ressalta. “A tecnologia possibilitará a liberação para a moagem das áreas que hoje são utilizadas como viveiro de mudas e, principalmente, permitirá ganhos na velocidade e escala de novas variedades de cana, mais modernas e produtivas.”
Fonte: Revista FAPESP – http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/02/15/lavoura-mais-produtiva-2/